terça-feira, 10 de novembro de 2009

Essa dança "já está qualquer coisa"

Digo isso porque existe uma diferença na dança de quem se entrega. A entrega é difícil, e arrisco dizer que não é uma entrega do momento em que se dança, parece mais uma entrega para o fluxo da vida, para a efêmeridade, para o que não se espera e nem se controla, para o amor, para as pessoas, para a política do corpo, para a criatividade. Tenho aprendido com a dança do ventre algo do tipo. Essa dança não tem sido qualquer coisa na minha vida, ela provoca os tais canais de abertura para a criação, os tais devires, os tais medos, as tais ousadias, as tais vaidades, as tais inseguranças que me seguram quando meu quadril treme, as tais das tais intensidades. Sabe aqueles escritores malditos, aquelas escritoras malditas, os vagabundos, os de esquina, as de quarto fechado, as de vozes silenciadas, as de desejos, os sem medo, as de subversão, as de amor, as de enfrentamentos, sabe? Me fazem lembrar das ghawazis do Egito, essas dançarinas de rua, essas dançarinas da vida, dessa invenção singular delas mesmas ao perceber no corpo os derbakes, os tambores, os pandeiros, o sagat, o sagrado femino, as histórias, os símbolos, a cultura, a música e agenciar tudo isso inventando uma dança. Religioso não, sagrado.


Tento abrir meu corpo para essas histórias, para esses povos árabes marginais para o ocidente, assim como os índios, assim como as mulheres e tantos outros. A dança do ventre não está para as mulheres, a dança do ventre esta para o feminino, para aquilo que procura brechas no corpo da gente e precisa ser reinventado. A dança do ventre é das mulheres, das pessoas, e não do mercado, do macho (macho é diferente de homem), da esculhambação, da humilhação e do desrespeito.

Penso também que a dança do ventre pode ser aprisionadora dependendo do modo como é compreendida e organizada pelo corpo de cada mulher que a desenvolve. Por ser um momento de encontro de mulheres para dançar e aprender a dançar, este encontro é encontro de uma série de coisas de dimensões afetivas e históricas que inevitavelmente aparecem. Não é possível saber como é dançar pra cada uma, mas é possível notar competitividades entre as mulheres, entre todas, arrisco a dizer que todas experimentam isso, seja sendo, seja vivendo, seja enfrentando.

Essa dimensão afetiva da competitividade, do cíume, do boicote, devem aperecer para se diluirem no encontro das mulheres, para sermos criativas enquanto vivenciamos esses sentimentos e abortá-los para dar vida a vida da outra dentro de nós, para dar morte a essa ressonância patriarcal que nos fazem boicotadoras de nossa feminilidade, para dar vida e território a essa diferença. Quando busquei a dança do ventre, busquei comovida por um encantamento vivido nos idos de 2005 ao assistir as danças tribais da companhia que hoje eu faço parte. Me encantei com aquelas mulheres fazendo “zagareet” ao dançarem com pandeiros, com sagat, com elas mesmas. Aquela dimensão tribal me fez lembrar de mim, de um passado presente no futuro que me faria dançar com elas.




Tocou em mim em liberdade, tocou com exaltação de possibilidades de vir a ser uma bailarina de dança do meu ventre, de poder emitir esse grito ensurdecedor do zagareet e livre para mim, para muitas, para muitos. Dançar tem me feito experimentar sentimentos conflitantes, que me convocam a crises, que me convocam a criatividade, a mudança, a coragem e a poesia.


Imagem(1) - Ghawazi с музыкантами, Каир (1856) - extraída de arabicdance.ru/pics/Ghawazi%20mit%20musiker.JPG

Imagem (2) - Não encontrei referência sobre essa imagem, mas exraí de www.dançadoventrebrasil.com.br

Imagem(3) - ghawazi (1890) - extraído de www.gildedserpent.com/.../ghawazi1890s.jpg

Imagem(4) - Mostra de danças árabes da cia. Rhamza Alli (dez/2008)- raks al daff